quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Artigo - O Fim Social do Dano Moral e a Vedação do Enriquecimento sem Causa

 
É cediço que nos últimos anos a concessão de indenização por danos morais vem se tornando uma prática comum nos tribunais, ameaçando a segurança jurídica e levando à banalização deste instituto. A chamada “indústria do dano moral” que se consolidou na maioria das ações em que figuram ilícitos civis vem confundindo o conceito de dano com o que se costuma tratar como mero aborrecimento.

A Constituição Federal de 1988, celebrada pela doutrina como Constituição Cidadã, garante a ampla reparação aos danos causados à imagem e à honra da pessoa, face principalmente ao princípio da dignidade da pessoa humana. No entanto, essa mesma Constituição determina que a lei deverá sempre buscar alcançar o fim social a que se destina.

Discutir o instituto do dano moral é, antes de tudo, de suma importância acadêmica, assim como para o ordenamento pátrio. Ao estabelecer a garantia da ampla reparação aos danos sofridos pela pessoa, o legislador quis garantir o princípio da dignidade da pessoa humana, porém, ao conceder liberdade à interpretação subjetiva do que realmente constitui dano moral e sofrimento exacerbado, houve uma explosão no número de ações desse tipo, o que ameaça banalizar o dispositivo legal e propiciar o enriquecimento sem causa, prática vedada pelo nosso ordenamento.

A perspectiva protecionista do direito no ordenamento pátrio não pode beneficiar aventureiros jurídicos que procuram ser reparados a título de danos morais por meros aborrecimentos.

Nos últimos anos, os tribunais de todo o país vêm enfrentando um abarrotamento no andamento dos processos, motivado pelo grande número de ações em tramitação, o que vai de encontro a celeridade processual e gera demasiado atraso no saneamento dessas demandas.A maior parte desses pedidos se resumem a ações de reparação por danos morais, o que estimula cada vez mais a ação de verdadeiros aventureiros jurídicos que formulam pedidos infundados.
A esse respeito, a primeira questão a ser abordada é a garantia ao amplo acesso ao judiciário, direito assegurado constitucionalmente que visa oferecer ao cidadão a tutela jurisdicional por parte do Estado. Dessa forma, não há que se falar em recusar ao cidadão, por mais que o pedido se mostre irrelevante ou mesmo absurdo, o direito a provocar o Estado para julgar aquele litígio.
Fazendo um breve estudo do dano moral, esse encontra suas origens históricas no segundo século antes da era cristã. O Código de Manu, na Índia, a Lei das XII Tábuas e o Código de Hamurabi, na Mesopotâmia ilustram claramente a previsão do direito de reparação da honra ou da imagem do ofendido, embora nem sempre houvesse adequação à sanção aplicada. Dispunha o Código de Hamurabi:
“Art. 127. Se um homem livre estender um dedo contra uma sacerdotisa ou contra a esposa de um outro e não comprovou, arrastarão ele diante do Juiz e raspar-lhe-ão a metade do seu cabelo.”

Com a evolução do direito na cultura moderna, tal garantia foi se moldando às necessidades da sociedade moderna, e logo despertou interesse entre doutrinadores na Itália, na França e na Alemanha. O Código Napoleônico e o BGB alemão também fazem menção ao direito de reparação por danos à honra e à imagem do ofendido, e serviram de base para os demais diplomas em diversos países, inclusive no Brasil.
A primeira referência no ordenamento brasileiro ao direito de reparação por danos morais aparece na Lei 4.117/62 - Código Brasileiro de Telecomunicações, seguida pelo Código Eleitoral (Lei 4.737/65) e a Lei de Imprensa (Lei 5.250/67), que também regularam esse instituto.
A Constituição Federal de 1988 prevê claramente em seu artigo 5º, incisos V e X que é assegurado o direito à reparação dos danos causados à imagem, à honra e à intimidade do ofendido. É assim que dispõe a Constituição Federal:
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
[...]
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”

Mais tarde, o próprio Código Civil Brasileiro veio complementar o texto constitucional, consolidando o instituto do dano mora no ordenamento pátrio. Dessa forma dispõe o artigo 186 do Código Civil de 2002:
“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

E conclui o artigo 927 do mesmo diploma:
“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”

No entanto, cabe distinguir o que caracterizaria realmente uma violação à honra e à imagem do indivíduo, uma vez que o legislador procurou não especificar tal conduta de modo a não limitar a interpretação dessa cláusula pétrea. Até quando o dano seria passível de reparação, e como quantificar pecuniariamente a extensão desse dano é o desafio do jurista ao aplicar o direito ao caso concreto e constitui um dos maiores entraves à ordem judicial.
Não basta ter havido um mero aborrecimento, um simples dissabor comum na vida em sociedade. A obrigação de reparação pressupõe a existência de três requisitos, que são a existência do dano, a ocorrência de conduta culposa do agente causador e o nexo de causalidade entre ambos. Sem quaisquer desses pressupostos, não há de se falar em dever de indenizar. É dever do autor comprovar a extensão dos danos sofridos por este e  demonstrar ostensivamente o nexo entre a conduta e a lesão resultante.
Ao tratar da honra subjetiva, o legislador concedeu ampla liberdade ao indivíduo para determinar o que caracteriza uma violação à sua imagem. Sem um critério objetivo, pois, o mero aborrecimento pode ser comumente confundido com o dano moral, afinal, o que é sofrimento para alguns pode não ser para outros. Essa liberdade constitui grave ameaça à segurança jurídica.
É dever do legislador tão somente avaliar o pedido formulado pelo autor na ação e, com base nos fatos apresentados por este, avaliar a existência do ilícito, sua relevância, a natureza do dano e outros critérios para só então conceder o valor a título indenizatório. Mas é aí que surge outra questão que merece ser discutida: como a honra e a imagem podem ser valoradas, e como o sofrimento pode ser reparado com o pagamento de certa quantia?
No dizer de Silvio Rodrigues: “O dinheiro provocará na vítima uma sensação de prazer, de desafogo, que visa compensar a dor, provocada pelo ato ilícito.” Essa é apenas um dos objetivos da condenação por danos morais, como bem complementa Rizzato Nunes:
“Seu objetivo é duplo: satisfativo-punitivo. Por um lado, a paga em pecúnia deverá amenizar a dor sentida. Em contrapartida, deverá também a indenização servir como castigo ao ofensor, causador do dano, incutindo-lhe um impacto tal, suficiente para dissuadi-lo de um novo atentado.”

Ou seja, com a condenação por danos morais, o legislador busca não só amenizar a dor e o constrangimento causado pelo ato ilícito, mas também punir o autor de modo a que este não repita a conduta, porém, não há qualquer garantia efetiva de que a condenação vai amenizar o sofrimento causado na vítima, nem que o autor não vai voltar a cometer o ilícito.
Em muitos casos, mesmo se tratando de situações desagradáveis e que causam certo aborrecimento, não se vislumbra efetivamente um dano considerável à honra ou à imagem, o que não justificaria qualquer espécie de indenização, apenas reforçando o entendimento de que o dano moral se tornou nada mais que uma via de enriquecimento sem causa.
A ação por danos morais é garantia constitucional e, como tal, deve ser resguardada daqueles que a utilizam exclusivamente como modo de vingança ou investimento, no fenômeno conhecido como indústria do dano moral. Nesses casos, é fundamental o esforço por parte dos magistrados em coibir esse tipo de conduta, que ameaça até mesmo a segurança jurídica. Foi o que fez com louvor o Juiz Luiz Gustavo Giuntini de Rezende, em decisão acerca de pedido de indenização por danos morais:
“Despacho proferido
434.01.2011.000327-2/000000-000 - nº ordem 60/2011 - Reparação de Danos (em geral) - - R. P. S. X BANCO DO BRASIL S/A - Vistos.
R. P. S. propôs ação de indenização por danos morais em face de Banco do Brasil S/A. O relatório é dispensado por lei. Decido. O pedido é improcedente. O autor quer dinheiro fácil. Foi impedido de entrar na agência bancária do requerido por conta do travamento da porta giratória que conta com detector de metais. Apenas por isto se disse lesado em sua moral, posto que colocado em situação "de vexame e constrangimento" (vide fls. 02).
Em nenhum momento disse que foi ofendido, chamado de ladrão ou qualquer coisa que o valha. O que o ofendeu foi o simples fato de ter sido barrado — ainda que por quatro vezes — na porta giratória que visa dar segurança a todos os consumidores da agência bancária. Ora, o autor não tem condição de viver em sociedade. Está com a sensibilidade exagerada. Deveria se enclausurar em casa ou em uma redoma de vidro, posto que viver sem alguns aborrecimentos é algo impossível.
Em um momento em que vemos que um jovem enlouquecido atira contra adolescentes em uma escola do Rio de Janeiro, matando mais de uma dezena deles no momento que freqüentavam as aulas (fato notório e ocorrido no dia 07/04/2011) é até constrangedor que o autor se sinta em situação de vexame por não ter conseguido entrar na agência bancária. Ao autor caberá olhar para o lado e aprender o que é um verdadeiro sofrimento, uma dor de verdade. E quanto ao dinheiro, que siga a velha e tradicional fórmula do trabalho para consegui-lo.
Ante o exposto, JULGO IMPROCEDENTE o pedido. Sem custas e honorários advocatícios nesta fase.
Pedregulho, 08 de abril de 2011.
Luiz Gustavo Giuntini de Rezende - Juiz de Direito.”

De outra forma, esse direito tende a cair em descrédito pela sociedade, sendo tratado apenas como um meio de obter vantagens financeiras em detrimento de meros aborrecimentos, por pessoas inescrupulosas que se aproveitam do benefício da justiça gratuita. A situação é tão crítica, que o próprio STJ já se pronunciou no sentido de realizar um tabelamento para a uniformização das decisões, bem como dos valores a serem concedidos a título indenizatório.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL, República Federativa do. Constituição Federal de 1988. Vade Mecum Acadêmico de Direito. Organização Anne Joyce Angher. 8ª ed. São Paulo: Rideel. 2009.

BRASIL, República Federativa do. Código Civil, Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Vade Mecum Acadêmico de Direito. Organização Anne Joyce Angher. 8ª ed. São Paulo: Rideel. 2009.

HAMURABI, Código de. Disponível em: <<http://www.culturabrasil.org/zip/hamurabi.pdf>> Acesso em 05 nov. 2011.

LEIRIA, Cláudio da Silva. Indústria do Dano Moral. Clubjus, Brasília-DF: 16 nov. 2007. Disponível em: <<http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.11730>>. Acesso em: 15 nov. 2011.

NUNES, Luis Antonio Rizzato. in O Dano Moral e sua Interpretação Jurisprudencial, 1999.

RODRIGUES, Sílvio. Responsabilidade Civil, 18ª Edição, São Paulo: Saraiva, 2000.

SÃO PAULO, Poder Judiciário de – Fórum de Pedregulho/SP.  Processo nº 434.01.2011.000327-2/000000-000. Disponível em <<http://www.pensandodireito.net/2011/05/uma-merecida-resposta-a-industria-do-dano-moral/>> Acesso em 05 Nov. 2011.

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